(2018) O Anjo Exterminador
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- Escrito por Maria Clara Gilson Mantuano
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Categoria: Filosofia e cinema
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Luis Buñuel é um artista que em seus filmes mostra a ressonância de várias questões de seu tempo sintetizadas em filmes que provocam diversas incompreensões. Lembre-se que Buñuel era alinhado com as causas da esquerda europeia e ao mesmo tempo capaz de se interessar em se envolver com o surrealismo. Acentue-se que o surrealismo foi um dos modos pelos quais a liberdade enfrentou o império de uma lógica racional e fez a vigília confrontar-se também com os estados oníricos. Há no surrealismo um desencanto com a racionalidade e, portanto, pretende-se numa resolução futura que o que é contraditório na aparência, isto é, o sonho e a realidade, devam coexistir indiscerníveis. Chega-se a contar no manifesto do surrealismo da década de 20 do século passado que os poetas mandavam colocar na porta de seus quartos na hora de dormir um cartaz onde se lia: o poeta trabalha. Dessa maneira o surrealismo é um inconformismo absoluto com a separação entre a objetividade e os sonhos, constituindo assim uma insurgência inconveniente da fantasia inseparável da realidade. Punha-se a consciência em crise como também as ideias de família, de pátria e de religião. Em relação a isso destaque-se que Buñuel, inspirado por Engels, questionava o otimismo do mundo burguês e duvidava da perenidade da ordem social existente. Há pois no filme "O Anjo Exterminador" uma inspiração política marxista crítica da burguesia e também uma crítica aos estados de consciência pela via da psicanálise, que lançava os fluxos da fantasia no interior da vida cotidiana. O filme se passa em uma mansão burguesa onde evidentemente pessoas de grande status econômico reunidos após uma ópera se dedicam às várias distrações de um salão. Amabilidades burguesas vazias, vantagens contadas entre os presentes, uma extroversão instintiva generalizada mostrava a frivolidade aburguesada e é nessa situação de frivolidades e banalidades que vão se infiltrar fenômenos surrealistas que deixam indiscerníveis e misteriosos os momentos entre o sonho que parece se imiscuir na realidade.
Buñuel utiliza um dos sinais mais definidores da psicanálise, aquele que mostra que os comportamentos são arrastados por uma repetição compulsiva em relação aos quais os indivíduos não têm como se defender. O diretor espanhol mostra esteticamente a repetição, caráter peculiar ao inconsciente, fazendo com que cenas sejam repetidas várias vezes no decorrer de poucos minutos. Os mesmos amigos são apresentados várias vezes, isto é, Buñuel recorre à repetição lançando duas vezes a mesma cena, sem significação aparentemente expressa. O anfitrião propõe um brinde e uma segunda vez repete o brinde. Há sinais de humor nessas cenas que deixam entrever o crescendo do filme no qual não se encontrará explicação racional para tudo. Os primeiros convidados dispostos a se retirarem sentem que algo os impede de cruzar o umbral da sala de estar. Não há em nenhum momento uma petição de princípio racional que explique essa situação insólita e evidentemente onírica. Nesse instante, por razões fantásticas, os personagens encontram-se enclausurados. Eles não têm vontade de sair e sem cerimônia os homens se livram das casacas e colarinhos e usam os sofás e tapetes como camas. A recepção social se prolonga até a hora do café da manhã e nisso, simultaneamente, autoridades, populares e familiares se concentram na porta da mansão dos "náufragos" da Rua da Providência.
Nem um destacamento policial teve ânimo para entrar pois havia a intransponibilidade do umbral da mansão por toda a humanidade exterior. Ocorre que já não havia alimento, água ou remédio para os convivas. O paradoxo estava instalado; o que parecia falsa realidade, o comportamento aparentemente ilógico permitia ao contrário enxergar uma realidade profunda. Antes mesmo desse filme Buñuel teria dito que o que há de mais admirável no fantástico é que o fantástico não existe, pois tudo é real.
O Anjo exterminador deu ao delírio a sua coerência, pois depois de todos saírem da mansão dirigem-se a uma igreja para, numa espécie de exorcismo, espantarem a angústia daquele enclausuramento. No entanto a coerência surreal se prolonga quando o padre, depois da benção, dirige-se para fora da nave da igreja, para o adro interno atrás do altar e eis que ele, então, também não consegue ultrapassar o umbral do grande portão da igreja. Repete-se o enclausuramento e uma espécie de vingança final do nonsense. Buñuel não cometeu uma blasfêmia, apenas deu ao real a forma de uma grande repetição. Uma trama do inconsciente, mantém-se aqui uma espécie de mistério insuperável.