(2018) O Anjo Exterminador
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- Escrito por Moacir Silva Costa
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Categoria: Filosofia e cinema
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A crítica à religião que se repete na obra de Luis Buñuel, em O Anjo Exterminador, se estende a outra instituição. A burguesia em seu hermetismo, é tão fechada e excludente quanto as sociedades secretas e religiões em geral, que de certa forma, subsistem por um entrelaçamento natural de apoio mútuo. Os processos de seleção são similares, no modo de escolha daqueles que podem penetrar em determinados círculos da hierarquia social, regida por essas instituições. Para entrar nessa membrana indestrutível, é preciso ter a posse da propriedade privada e dos meios de produção, seguir comportamentos pré-estabelecidos, acreditar que certos dogmas são conhecimentos verdadeiros e obedecer docilmente, sem protestos, às regras impostas pelos Estados dirigidos por esses grupos. O que Buñuel parece querer mostrar é que a fraqueza da burguesia está em manter sua existência, dependente do que está fora de seu círculo fechado. O que permite o estilo de vida hermético burguês, com todas as suas práticas e delícias, por seu próprio desejo elitista, é alienado de seu meio. O burguês existe pela permissão do proletário, que também é dependente, mas tem o desejo de não depender. Operários e serviçais são o povo acostumado a exercer livremente o ir e vir do lado de fora das mansões burguesas. Sem grades, sem medos, vivem com prazer nas ruas inóspitas as elites, nas praças, sob chuva e sol.
A maior parte da história acontece em uma única locação: uma mansão que começa a ruir após um jantar. A burguesia quer ser aristocracia, desfilando de longos e fraques, trancada em si, vai se demolindo, improdutiva, sem o contato com o mundo exterior. Condenada pela dependência, na normalidade da própria esquizofrenia, perde a maioria dos serviçais após um jantar, mas a conversa prossegue sobre negócios e dívidas; pelos cantos, às escuras, a falsidade impera. Nas paredes e portas foram colocados símbolos religiosos, que contradizem tanto as religiões quanto o comportamento burguês: São Francisco de Assis representa a pobreza que os burgueses promovem; Maria, a advogada intercessora, é símbolo da justiça que os burgueses não praticam e o próprio Cristo, símbolo de igualdade, entre os burgueses, dispensa comentários. As personagens presas por grades invisíveis, participam de um clássico “Big Brother”, onde o convívio derruba as máscaras, quebra os saltos, desgrenha os vestidos, afrouxa as gravatas, tira paletós e a fineza bruscamente sai de cena, substituída pela rudeza da antropológica animalidade egoísta e uma implosão dissimulada da sexualidade reprimida. Ali, junto a desejos obscuros, invejas e outras vulnerabilidades humanas; alguém grita desesperadamente: - Adonai! A expressão “meu Senhor” em hebraico, pode ser usada tanto por um judeu quanto por um maçom, que se sente desprotegido e solitário naquele calabouço hermético, na companhia de seus iguais. Lá dentro, ninguém pode ajudá-los, somente fora da mansão poderão encontrar a produção necessária à sua própria sobrevivência e felicidade, que eles mesmos barraram na festa.
Acaba o alimento, animais passeiam, mas os burgueses não caçam. O urso negro norte-americano não parece um bom amigo. O único serviçal presente, que antes de começar a demolir piso e paredes, comeu o papel, símbolo das escrituras, faz as honras. Os tacos do imóvel viram fogueira e os cordeiros domésticos encoleirados, são assados um a um. A carne dos animais sacrificados como ofertas pelo pecado, antiga prática judaica, não é o bastante para matar a fome burguesa. Culpar inocentes pelo próprio pecado é a raiz da degradação moral de todas as elites que comandaram a economia durante a história. Quando a burguesia em desespero se aproxima da morte, percebe que precisa se refazer para parir-se em um novo nascimento que lhe dê fôlego e na dobra da realidade vivida anteriormente, encontrar um recomeço, uma saída. Contudo, renasce idêntica pelas mesmas práticas, ao retornar pelo mesmo caminho aos portões da mansão, sai, mas não se liberta. Sem aprender com próprio erro, segue se repetindo, cerrada em templos que separam o homem do homem.
O surrealismo pelas mãos de Buñuel, pinta cores fortes na realidade. Há uma perspectiva sartriana neste modelo de hermetismo, onde ninguém entra e ninguém sai. De fato, seríamos todos iguais se nossas essências não fossem formadas pela existência a partir de cada meio. Entretanto, a variação permite a liberdade na opção. O pesadelo burguês associa o surrealismo à ortodoxia freudiana, no inconsciente fantasmático dos sonhos. Durante o sono, o que aflora surge desordenadamente, fugindo à razão. A morte da burguesia é profetizada em detrimento da costumeira crítica do cineasta às religiões. Essa morte certa, apontada por visionários como Karl Marx, tem suas causas na impossibilidade de uma minoria manter-se indefinidamente senhora da maioria, pelo simples fato de depender da existência da produção dessa minoria. Os fetiches surgem no imaginário como formas de solucionar esses problemas. O apelo à providência divina não resolve, mais alguns dias de clausura e a mansão na Rua da Providência seria totalmente demolida; causa mortis - o próprio hermetismo burguês: o anjo exterminador. Contudo, com a repetição das mesmas cenas, representando a prática das mesmas estratégias, o antigo sistema é refeito na marcha da história. Entre crises de produção e consumo; greves, revoluções e anarquismos, a velha sociedade capitalista burguesa sobrevive sempre da mesma relação entre os voluntariamente dependentes, que se veem como senhores; e os trabalhadores que se consideram livres, mas são escravos, tendo seu trabalho alienado por uma dependência involuntária, que eu pessoalmente arrisco julgar também desnecessária em um mundo onde a madeira e os cordeiros são gratuitos. Luiz Buñuel abala os anos sessenta ao despir a sociedade aninhada sob as asas de um anjo caído.